A última parada
Renato de Campos César Arruda
Segunda-feira pela manhã, acordo atrasado para o trabalho, desesperado para não perder a hora e conseqüentemente, o emprego. Toda vez que o Horário de Verão se inicia é a mesma agonia, o mesmo atraso, a mesma raiva em saber que estou perdendo uma hora do meu precioso sono. Mas enfim, de nada adianta ficar com raiva, o melhor é tentar relaxar e levar numa boa, sem começar a semana estressado. Infelizmente perdi o meu ônibus, e tive que esperar o próximo, já sabendo que me atrasaria por pelo menos uns quarenta minutos, e já pensava em uma boa desculpa para o Dr. Leandro, chefe do gabinete 201, o qual eu trabalho no Ministério da Justiça, que é temido por todos pela rigidez e cobrança no trabalho.
Ainda bem que encontrei um banco no ônibus, que estava relativamente vazio se comparado aos outros que passavam pela estrada e levando-se em consideração que várias pessoas se atrasam, assim como eu, com o início do Horário de Verão. Liguei meu MP3, encostei-me à janela e acabei pegando no sono, afinal tinha dormido uma hora a menos do que o normal devido ao bendito Horário de Verão. Como estava atrasado, era de se esperar que eu enfrentasse um engarrafamento muito grande, e como já iria me atrasar mesmo nem me preocupei e preferi aproveitar a oportunidade pra dormir e sonhar com a excelente desculpa que daria ao queridíssimo Dr. Leandro.
Estávamos passando em frente à entrada do Parque da Cidade, próximo ao Sudoeste, quando de repente acordei com o ônibus parado. Olhei para o lado e percebi que todos os passageiros estavam com os olhos arregalados, e sem entender o motivo estiquei meu pescoço para enxergar o que estaria acontecendo, quando vi um rapaz armado, anunciando que queria dinheiro, jóias, celulares, aparelhos eletrônicos e tudo de valor que poderíamos ter, e avisou que a partir daquele momento todos nós estávamos nos tornando reféns, pois ele não se satisfaria com dinheiro, mas queria a atenção que nunca lhe deram, e nós é que iríamos “pagar o pato” por todo o sofrimento e abandono que ele sofreu. Eu estava acordando, meio lerdo ainda, tentando processar todas as informações que o rapaz havia nos informado, sem conseguir pensar na gravidade da situação e ficando, assim como os outros passageiros, com os olhos arregalados.
O rapaz começou a retirar os pertences dos passageiros, e neste momento eu já estava mais acordado e comecei a me desesperar, pensando no que poderia acontecer comigo naquela situação, quando pela primeira vez olhei para o criminoso, observando atentamente a fisionomia do rapaz, e me assustei quando percebi que o rapaz armado era na verdade Beto “Bolinha”, aquele rapaz gordinho que estudou na minha sala até os meus dezessete anos e que era sim discriminado por muitos, e sofria demais por isso.
Já fazia muito tempo, nem sei como fui lembrar-me das brincadeiras de mau gosto, das piadinhas sem graça, da exclusão da qual o rapaz era submetido e das inúmeras vezes que o coitado apanhou sem nada ter feito. E junto com todas essas lembranças veio um desespero maior ainda, pois apesar de nunca ter feito nada com o rapaz, ele poderia não se lembrar disso e pensar que eu fui um dos causadores de todo o sofrimento dele e fazer algo muito ruim comigo por esse motivo.
Conforme o rapaz ia se aproximando de mim eu ia me lembrando das histórias do coitado do Beto “Bolinha”, inclusive da última que tive notícia, justamente aquela que muitos disseram ter sido a “gota d’água” para Beto “Bolinha”. Tínhamos dezessete anos, estávamos no fim do Ensino Médio, e o garotinho gordinho que tanto sofreu continuou tendo a mesma sina, o mesmo destino, as mesmas humilhações, principalmente aquelas vindas do Fabinho e de seu grupinho. Fabinho era um rapaz alto, vistoso, popular, aquele que todas as garotas queriam namorar. Todos gostavam do Fabinho e, por isso, nunca ninguém fez nada a ele, mas havia uns três anos que ele tinha começado a mexer com coisa que não presta, a andar com moleque bandido e a destruir a bela vida que teria pela frente. Naquela época, Fabinho começou a treinar capoeira perto do clube, depois de muita insistência em casa, e tornou-se um aluno de destaque, aprendendo de maneira espetacularmente rápida todos os movimentos que lhe eram ensinados e cada vez mais se aprimorando na arte da capoeira.
Mais ou menos uns seis meses depois que ele entrou nas aulas de capoeira conheceu um rapaz chamado Pedro, que se tornou amigo de Fabinho em pouquíssimo tempo. Conforme a amizade ia crescendo, Pedro certo dia disse que iria ensinar ao Fabinho como o mundo era, e fazer dele um homem de verdade. Fabinho, já confiando muito em Pedro, resolveu aceitar a proposta para se tornar um homem de verdade e foi ao local onde Pedro disse-lhe para ir. Chegando ao local combinado, Pedro entregou uma faca e um “baseado” para Fabinho, e disse que eles iriam assaltar muito naquela noite, e pra terem coragem iriam primeiro fumar uns “baseados”. Fabinho não era um rapaz ruim, vinha de uma família boa, tinha ótimos antecedentes, era aluno exemplar na escola e orgulho para os pais. A princípio ele disse que não iria fazer aquilo, e já estava devolvendo a faca e o cigarro de maconha para o até então amigo quando este falou que Fabinho tinha entrado num beco sem saída, que a partir daquele momento o rapaz não tinha mais escolha a não ser fazer o que ele estava mandando, ou então ele iria usar aquela faca na barriga dele, matando-o ali mesmo. Fabinho, sem escolha, fumou seu primeiro cigarro de maconha e praticou seu primeiro crime, um assalto à padaria.
A partir daquele momento a vida de Fabinho mudou de rumo de maneira incrivelmente rápida, e fez daquele garoto que todos adoravam um verdadeiro marginal. Em três meses ele já estava assaltando sozinho, já não era mais bom aluno, tinha uma aparência feia, tinha perdido todo aquele brilho do olhar e toda aquela beleza que tinha, dava muita dor de cabeça aos pais e só trazia problemas para si. Aos quinze anos Fabinho já estava completamente dependente das drogas. Foi quando os pais dele o mudaram de escola, e o colocaram justamente na escola onde eu estudava, exatamente na sala que eu estava tendo aulas, mesma sala do Beto “Bolinha”.
Com a índole já transformada, Fabinho viu em Beto “Bolinha” uma razão para se divertir, pois ele adorava machucar as pessoas, com palavras, atos e com a mão também. Começou a brincar com o rapaz, fazendo piadas de muito mau gosto, fazendo por muitas vezes o rapaz chorar de desespero e medo. Foi assim até o fim do Ensino Médio, quando tínhamos dezessete anos. Quanto mais Beto “Bolinha” pedia pra parar, mais apanhava. Até que certo dia Beto “Bolinha” não mais agüentou, chegando à escola com uma faca escondida na mochila. Esperou Fabinho levá-lo para o banheiro para bater nele e quando o marginal menos esperava levou duas facadas no peito, e ouvimos os gritos de dor dele de muito longe, e vimos o rapaz morrer ali mesmo no chão do banheiro, agonizando de maneira terrível. Beto “Bolinha” foi levado direto para a delegacia, e por um acaso do destino matou o rapaz a um mês de completar dezoito anos, e por isso teve uma pena bem mais tranqüila do que aquela que teria se já fosse maior de idade. Depois daquela trágica manhã eu nunca mais tive notícia do rapaz, até o dia do ônibus.
Ele passou por mim, pegou meus pertences de valor, e continuou assaltando os outros passageiros, e eu dei graças à Deus pelo fato de ele não ter me reconhecido, até que de repente ele volta, olha para mim e diz, “eu te conheço de algum lugar, e espero que você não tenha feito nada de ruim para mim, pois senão...” Eu gelei dos pés à cabeça, sabendo que se ele por acaso colocasse na cabeça que eu já tinha feito ele sofrer eu seria um homem morto. Logo após ele ter falado isto para mim a polícia chegou ao local, cercando o ônibus e fechando a avenida, impedindo qualquer pessoa de passar por ali, e junto com ela chegou a imprensa, com todos os fios, microfones, luzes e câmeras. O circo estava montado, e Beto “Bolinha” iria ter a atenção que queria, mas pelo menos eu sabia que o final não seria exatamente como ele imaginava. A polícia iniciou o trabalho de negociação com o rapaz, que se dizia duro, capaz de enfrentar todos que estavam ali, sem ceder nem um pouquinho, disposto a fazer qualquer sacrifício para realizar o plano que tinha feito para aquela manhã.
Eu comecei a contar quantas pessoas estavam submetidas àquele cárcere privado, e concluí que juntamente comigo estavam quatro homens e sete mulheres dentro do ônibus, mais o motorista e o cobrador. Naquele momento Beto “Bolinha” mandou todos irem para o fundo do veículo, com medo de que alguém pudesse atingi-lo pelas costas. Fomos todos para os últimos bancos, e ficamos abaixados sob eles, sempre obedecendo a todas as ordens do rapaz. Ele então começou a explicar os motivos de tudo aquilo, dizendo que pessoas o fizeram sofrer, e nós serviríamos de exemplo para elas. Muitos já choravam naquele momento, quando ele novamente se dirigiu para mim, e disse, “lembrei, você estudou naquela maldita escola comigo. Eu estou assim por causa daquela droga de escola. Todos que estudaram comigo devem pagar por isso, e você vai ser o primeiro.” Tudo aquilo que eu mais temia aconteceu. O rapaz, além de ter me reconhecido, ainda me jurou de morte por achar que eu também fiz coisas ruins a ele. A partir daquele instante eu passei a esperar pelo pior, ficando completamente sem esperança.
Naquele momento eu percebi a chegada do BOPE, Batalhão de Operações Especiais do Distrito Federal, e percebi que a coisa era muito mais séria do que eu tinha imaginado. Eles assumiram a situação, com uma intensa negociação com o criminoso, que dizia estar apenas vingando todos os segundos que sofreu na vida, e para isso precisaria sacrificar algumas pessoas, que seriam os objetos da sua maligna vingança. Do momento que eu acordei até a chegada do BOPE haviam se passado uma hora, quando o meu celular tocou. Era o Dr. Leandro, querendo saber onde eu possivelmente estava, mas quem atendeu ao Dr. Leandro não fui eu, mas sim Beto “Bolinha”, que mandou o Dr. ligar a televisão para achar o funcionário que ele estava procurando, e que se ligasse mais uma vez alguém iria morrer.
Ele então pegou um cigarro de maconha de dentro do bolso e começou a fumar, ficando um pouco fora de si, o que era relativamente bom. Porém incrivelmente nervoso, o que piorava a situação. Foi quando ele me mandou levantar, apontando a arma para a minha cabeça, me usando como um escudo, evitando a morte que poderia lhe alcançar a qualquer momento. Depois de duas horas de negociação ele finalmente libertou as primeiras vítimas, uma senhora que se debulhava em lágrimas de tanto nervosismo, uma mulher grávida de mais ou menos oito meses e um rapaz que estava passando mal. Com três a menos, éramos cinco homens, contando com o motorista e o cobrador e cinco mulheres.
Por todo o tempo em que começou a me usar como escudo permaneceu apontando a arma para a minha cabeça, apertando, por vezes, com muita força, dizendo no meu ouvido que eu seria a vítima que ele levaria consigo, pra onde quer que ele fosse. Eu estava desesperado, e comecei a ser usado como instrumento da negociação, transmitindo as informações que eram passadas de ambos os lados, e pedindo pelo amor de Deus que não me deixassem morrer. Eu só conseguia pensar na minha esposa, na minha família, nos meus amigos. Toda a minha vida estava passando na minha cabeça como um filme, e eu não mais conseguia raciocinar.
Muita conversa já tinha acontecido e cinco horas mais tarde ele libertou quase todos os reféns, deixando no ônibus apenas eu e duas adolescentes desesperadas, quando eu percebi a esperteza dele, que retirou de perto dele todos os outros homens que poderiam ser uma ameaça a ele, mantendo, de homens, apenas eu, que seria o instrumento da vingança dele, e as duas jovens que nenhuma ameaça representava ao criminoso. Apesar de todo o nervosismo, todos começaram, inevitavelmente, a sentir fome, pois estávamos sem comer a várias horas. Ele me mandou pedir comida pela janela, algo como sanduíches ou coisa assim, e dez minutos depois me entregaram duas sacolas pela janela, quando o comandante me fez um sinal me avisando que havia um transmissor escondido na sacola, para que a equipe da polícia pudesse ouvir tudo o que estava acontecendo dentro do ônibus.
Eu, sem que ele percebesse o que estava fazendo, enfiei o transmissor no bolso da minha jaqueta, e entreguei os sanduíches para todos, e ele nos fez comer do sanduíche dele primeiro para depois comer sossegado, certificando-se assim que não havia nenhum tipo de veneno ou algo do tipo. Após o lanche e apesar de ter uma arma apontada para a minha cabeça, fiquei mais calmo, como se a comida me aliviasse um pouco, além de saber que a polícia estava acompanhando toda a conversa dentro do ônibus.
Já estávamos no meio da tarde quando a polícia desistiu das negociações e começou a armar uma maneira de invadir o ônibus e render o criminoso, e isso era tudo o que eu mais temia, pois eu sabia onde tudo iria terminar. Minhas pernas tremiam, lágrimas escorriam do meu rosto, o medo de morrer se espalhou em mim. De repente escutei um barulho muito alto, e balas quebraram o vidro do ônibus e me atingiram no peito e no pescoço, e eu caí no chão, olhando para as duas garotas que estavam no fundo do ônibus antes de fechar meus olhos, ao mesmo tempo em que sentia o sangue saindo da minha boca e o ar faltando em meus pulmões. Eu sabia que iria morrer, e agonizei até que ela me alcançasse. Depois disso, não sei de mais nada, fechei meus olhos pela última vez e me despedi deste mundo.
Ou pelo menos pensei que teria me despedido, pois algum tempo após o ocorrido, abri meus olhos, sem saber o que estava acontecendo, vendo-me num lugar desconhecido, sem saber que dia era, se eu estava vivo ou não, se aquilo era ou não real. Quando entram pela porta duas pessoas vestidas de branco, e foi quando eu pensei que realmente tinha morrido, até sentir uma dor infernal provida de uma injeção aplicada por uma das pessoas que chegaram ao tal local. Naquele momento de dor me explicaram que na hora do tiroteio eu levei um tiro no pescoço e outro bem no peito, exatamente na direção do coração, mas fui salvo por causa de um transmissor que havia no bolso da minha jaqueta, e consegui sobreviver por isso. O tiro que levei no pescoço rompeu veias importantes do meu pescoço, e para evitar enormes dores que eu sentiria pelas três cirurgias que fui submetido, me induziram ao coma por vinte e cinco dias, até aquela tarde.
Quanto ao rapaz, ele não foi atingido por nenhuma bala, mas foi preso numa invasão feita pela polícia e morreu antes de chegar à delegacia, com traumatismo craniano, causando para si um final exatamente igual àquele ao qual foi por tantas vezes submetido na adolescência.
Quanto a mim, estava muito feliz por ter sobrevivido, principalmente quando soube que foi por causa de um pequeno aparelho que continuei vivo, mas ao mesmo tempo ficava triste quando imaginava o rapaz apanhando na viatura de polícia, sendo espancado até a morte, sofrendo como nunca um ser humano deveria sofrer, e comecei a sentir pena do rapaz, imaginando o quão triste é o lugar para onde foi após a morte.
Após sair do hospital, resolvi estudar medicina, e me tornar um psiquiatra, para, assim, poder ajudar jovens como Beto “Bolinha” a não cometerem tais burrices e acabarem com suas vidas. Hoje, trinta e três anos após o trágico evento daquele dia, sou mestre em psiquiatria, escrevi sete livros sobre diversos temas, como criminologia, traumas infantis, dentre outros. Sou conhecido em todo o país por ser o rapaz que sobreviveu por causa de um transmissor de cinco centímetros.
Depois da última parada minha vida mudou completamente, e hoje eu posso ajudar jovens como Beto “Bolinha” a superarem traumas e assim viverem normalmente. Após ter escrito meu terceiro livro construí meu próprio Centro Psiquiátrico, o “Beto Centro de Psiquiatria”, em homenagem ao homem que serviu de instrumento para que eu pudesse curar jovens como ele.