Tempos de criança










Tempos de criança
Nélio Bessant
Minha linda:
Dos meus idos e felizes tempos de infância, guardo na memória muitos fatos e diversas sensações experimentadas. Algumas tristes, outras - a grande maioria - alegres, muito alegres. Tenho daquela época, evocações indescritíveis, como, por exemplo, a memória olfativa de um aroma agridoce que eu percebia sempre que passava pela porta de um determinado armazém de secos e molhados que se situava nas proximidades do Mercado Municipal de minha cidade. Só muitos anos mais tarde, ao sentir o mesmo aroma, num passeio por Paraty, vim a descobrir que se tratava do cheiro gostoso do açúcar mascavo, exposto em sacas abertas, para a venda no varejo. E, assim são muitas das minhas lembranças....
Uma outra recordação interessante - embora dolorida e até, por que não dizer, um tanto asquerosa, é a memória que tenho dos pequenos ferimentos e arranhões que sofria em face de uma queda ou topada com o dedão do pé descalço, andando pelas ruas ainda sem calçamento. Cada arranhão produzia, invariavelmente, uma pequena ferida, que, pelo do processo de cicatrização, se transformava em uma (como dizer isto sem ser nojento ?)... uma 'casquinha' (acho que assim fica menos ridículo). Pois bem, tirando a dor da topada ou da queda, o que restava era o puro prazer - embora um tanto mórbido - de, aos poucos, ir arrancando as casquinhas da ferida... AAAARRRGGGG, EEEECCCAAA !!!
A grande compensação de tudo isso, era ver a pele novinha em folha sendo refeita pelas células do corpo. Maravilhas da Mãe Natureza.
Mantidas as proporções, os ferimentos de meu coração são parecidos com os da minha infância. E o seu telefonema não machucou 'mio cuore' nem um pouquinho. Antes, pelo contrário: me proporcionou a imensa felicidade de sentir a gostosa dor experimentada na distante infância. Tudo que você fez, foi tirar a 'casquinha' que recobria a ferida que estava quase cicatrizada. Mas, sob ela, pude ver um coração pulsando alegre e bem disposto. Como já disse, ainda sangra, mas não dói mais.
Hoje eu estou, digamos, meio 'sangüinolento'. Espero que você não se impressione com minhas bobagens.
Não preciso interromper, mas o faço... ficaria o dia todo escrevendo pensando em você, mas você ficaria cansada de tanto ler tanta bobagem... Mio cuore é assim mesmo: um grande tolo que acredita nos sentimentos e pulsa por eles, apenas por eles.